A história de um artista controverso pelos olhos de seu neto José Paulo
DEDICATÓRIA
Ao meu avô, minha avó Violante, meus tios e tias Walter, Wilson, Wilma, Walderez e minha mãe Valsemia.
Infelizmente, meu avô não deixou um catálogo de sua obra que, com certeza, tem grande extensão. Quando o perguntavam quantos quadros havia pintado, dizia que só na cidade de Santos, São Paulo – Brasil, existiam 1.000 quadros, e que havia pintado entre 3.000 e 4.000, hoje espalhados pelo mundo. Em uma única exposição em Santos, vendeu todos os 102 quadros expostos.
A fama nunca o atraiu. Ficava realizado quando vendia um quadro, que para ele era a demonstração de que seu trabalho era aceito e agradava.
Já se passaram 45 anos desde sua morte, e resolvi criar este documento para poder atender a muitos interessados que me escreveram ao longo dos anos em busca de informações, e também para galerias de arte que pediam informações sobre este controverso pintor brasileiro, perpetuando assim sua memória.
Em 1975, ano de seu falecimento, eu só tinha dez anos, e vou relatar minhas impressões pessoais e histórias que ouvi de familiares. Gostaria de ter tido mais tempo com meu avô para aprender um pouco mais sobre sua personalidade controversa e também a pintar melhor.
Tudo que encontrei até hoje sobre sua biografia começa praticamente com ”Pintor boêmio”, o que é um fato, e ele mesmo nunca negou seu gosto pela noite e boemia. Porém, na busca que fiz nos últimos anos, encontrei uma versão um pouco diferente, de um homem espiritualista, preocupado com a desigualdade e pobreza na humanidade, que contribuiu para a Igreja e também para a construção de um centro espírita, que criou e educou 5 filhos, e até juntou algum dinheiro, fazendo o que mais amava na vida, que era pintar.
Me permiti uma certa licença poética na elaboração do texto para combinar com o artista Antonio Godoy e até o agradar, onde agora se encontrar.
OITO ANOS ESTUDANDO NA EUROPA
Com 16 anos se muda para Europa, e falo Europa e não Espanha, pois os relatos são de muitas viagens pelo continente para estudar pintura, aprimorar suas técnicas, e conhecer as obras dos grandes mestres. Entre eles el Greco, Velázquez, Zurbarán, Goya, Rembrandt, e em especial Salvador Dalí, que acredita-se ter conhecido e que ele tinha como o maior desenhista de todos. Foi duas vezes para a Europa estudar. Na primeira, ficou 7 anos, na segunda, mais 1 ano em Madrid. Estudou em Málaga, Valência e na Real Academia de Belas Artes. Visitou Madrid, Roma, Berlim, Barcelona, Milão, Lisboa, Amsterdã, sempre em busca de conhecimento.
Em uma de suas entrevistas cita que teve aulas e muito aprendeu com seu amigo e “Professor Zuloaga”. O tal professor não era nada mais nada menos que Ignacio Zuloaga (1870-1945), um dos mais destacados pintores espanhóis do Século XX, com prêmios e distinções internacionais e com a crítica de Paris da época, denominando-o como “O Último Grande Mestre da Escola Espanhola de Pintura”. Zuloaga era um grande viajante e tinha um círculo de amizades em Paris, que incluíam Toulouse-Lautrec, Degas, Gauguin, Van Gogh, Blanche, Emile Bernard, Paul Maurice y Máxime Dethomas. Onde se encontraram e pintaram juntos? Isto influenciou a ida de Antonio Godoy a Paris, Berlim e muitas outras cidades? Acho que nunca saberemos.
A VOLTA PARA CASA EM UM NAVIO CARGUEIRO
Para manter uma certa cronologia, resolvi inserir esta curiosidade no início. Após estudar e viajar durante 8 anos pela Europa, entre 1919 e 1926, retornou ao Brasil para permanecer alguns meses e em seguida voltar à Espanha. Nestes anos, viveu de recursos que tinha e da venda de seus quadros. Não se pode precisar o motivo de seu retorno em 1926, mas um documento relata que da primeira vez acabou retornando ao Brasil a bordo de um navio cargueiro, e não um navio de passageiros, o que pode sugerir o fim dos recursos e da fase boêmia na Europa.
O QUADRO QUE NÃO TINHA PREÇO
Por incrível que pareça, não era um quadro próprio. Em seu retorno da Europa, em 1926, trouxe consigo um quadro de Augustus Jules Bouvier, que permaneceu na sala de sua casa até sua partida, apesar de ter recebido inúmeras propostas para a venda. Dizia que “o quadro não tinha preço”, e não o vendia. Não se sabe o motivo de tamanho apego pela obra. Bouvier faleceu em 1881, ou seja, antes do nascimento de meu avô, então nunca se encontraram. Talvez uma aposta nos anos na Europa, ou um presente, não se sabe, mas o fato é que nunca o vendeu.
AS PINTURAS VIAJANTES COM TINTA AINDA FRESCA
No início de sua carreira no Brasil, costumava visitar os navios no porto de Santos, com uma coleção imensa de fotografias, desafiando os tripulantes que podia pintar qualquer foto em horas e que bastava uma fotografia 3x4 para pintar uma família inteira, e o fazia com maestria. Assim muitos e muitos quadros foram pintados a bordo dos navios durante a noite, e na manhã seguinte seguiam, ainda frescos, para países de todo o mundo.
A VIDA NOTURNA DE SANTOS NAS DÉCADAS DE 40 A 80
Quem teve o prazer de conhecer Santos nos tempos em que a “Boca” ou “Zona” era o lugar da boêmia e de diversão da cidade, pode se sentir feliz. Eram outros tempos, o mundo não era o de hoje, havia um certo romantismo no ar, principalmente mais perto do começo do século XX.
Na minha época, início dos anos 80, as casas noturnas trabalhavam até o dia raiar, muitas e muito luminosas, e as ruas ficavam cheias de gente, pois não havia espaço para se transitar pelas calçadas. Se falava que tinham 30.000 mulheres trabalhando por lá. Eu não duvido.
Dei uma pesquisada e lembrei de alguns estabelecimentos da época: Bataan La Barca, Sweden, os gregos Hellas, Patsa, Akrópolis e Zorba, Night Club Bamako, Papa Jimmy, Seaman's House, Suomi, Porto Rico, Universal, A Tasca, Scandinávia, Hamburg, Bergen, Zanzi-Bar, Pan-American, Oslo, Tivoli, Reeperbahn, El Congo, Braço de Ouro, Lucky Strick, Charm, Pombal, Love Story, Corujão, Santa Madalena, o chinês Tai Pin, Drink's 490, Amsterdã, Bar A.B.C, e o popular Restaurante “Chave de Ouro”, fundado em 1912, tendo encerrado suas atividades em 1977.
Muitas vezes terminamos a noite comendo um “xis burgue” ou um “xis baicon” no ”carrinho da zona”, que era barato e “bom”, além de ser divertido, pois os frequentadores eram do mundo todo, e no mínimo tipos curiosos. Era uma cena de filme.
No final da década de 80 veio a AIDS, as drogas, os delinquentes, e a degradação da área foi realmente grande, encerrando um ciclo.
BAR ABC E CHAVE DE OURO (1912-1977)
O “A.B.C. House Night Club” ficava na esquina da Rua João Octávio e Travessa Dona Adelina em Santos e o glorioso ”Chave de Ouro” fechava a “Boca”.
Como que centralizando todo o movimento, e passagem obrigatória para todos os habitués da noite, o tradicional restaurante "Chave de Ouro" possuía, nos seus tempos áureos, uma espécie de galeria de arte nos seus requintados salões, o lugar preferido de Antonio Godoy.
Os artistas amigos da casa expunham lá suas pinturas e desenhos, comprados geralmente por estrangeiros, muitos destes, comandantes de navios.
Intercalando sua presença no "Chave de Ouro", era também frequentador assíduo do Bar ABC.
EXPOSIÇÃO TERMINADA, QUADROS VENDIDOS, ENTÃO VAMOS JANTAR NO "CHAVE DE OURO"!
Como já citei, o ponto favorito do meu avô era o “Chave de Ouro”, por alguns motivos: era perto do cais, onde chegavam os navios que levam seus quadros para o exterior; por causa da sua galeria de arte nos nobres salões; e com certeza por causa da boêmia. Era o lugar perfeito para juntar o útil ao agradável.
O COMEÇO DE SUA FAMA INTERNACIONAL
Seu primeiro lote de telas exportadas foi resultado de uma aposta ali no "Chave de Ouro". Depois de uma exposição de sucesso no Guarujá, foi jantar e comemorar no seu restaurante preferido. O comandante de um navio norueguês, Mr. Gustavson, viu que meu avô estava com a caixa de pintura e tela e perguntou se ele seria capaz de pintar um quadro de seu pai, olhando uma fotografia, e isso antes que seu navio partisse.
Acontece que o navio sairia no dia seguinte às 10 horas da manhã. Os amigos incentivaram uma aposta. Apostou e ganhou. Às 3 horas da manhã, o quadro do pai do Comandante estava terminado e foi recebido com elogios. Na manhã seguinte, ainda houve tempo para que Mr. Gustavson visitasse o ateliê do meu avô, e comprasse todos os 10 quadros prontos que ele tinha em casa. E assim, seguiram para a Noruega os primeiros 11 quadros de um artista brasileiro, que até aquele momento era desconhecido por lá.
ATÉ GODOY CLUBE
Encontrei diversos cartões postais, fotos assinadas e cartas de comandantes de navios, várias com citações com os nomes dos navios e muitas impossíveis de se ler, mas pelo que se sabe, nunca mais foi visto o Comandante Gustavson. A fama do pintor santista se espalhou pelos países escandinavos e assim, muitos comandantes desembarcavam em Santos e visitavam meu avô em busca de suas obras. Era comum fazerem encomendas expressas, nas quais traziam fotografias e já saíam com quadros prontos. Nestas ocasiões os preços podiam subir um pouco.
Alguns anos depois, amigos do meu avô que visitaram a Noruega descobriram que Mr. Gustavson havia fundado o Godoy Clube, na cidade de Bergen, e que no Museu de Bergen há uma sala só com quadros seus e o nome da sala é Antonio Godoy.
Além da Noruega, muitos navios levaram seus trabalhos para todo o mundo e no final de sua vida, praticamente todos os quadros que pintava eram encomendas e destinados aos Estados Unidos, Japão, China, França, Inglaterra e Alemanha. Costumava dizer que seus quadros estavam presentes em quase todos os países do mundo.
OS QUADROS DA SANTA CASA: RESTAURAÇÕES E DOAÇÕES
Uma imagem pouco conhecida do meu avô era seu lado filantrópico. Ajudou pessoas, igrejas, na construção de um centro espírita, deu dinheiro aos pobres, sempre sem fazer alarde. Quando estava em casa e com a família, fazia parte do seu perfil a seriedade e introspecção. Na rua e na noite era um boêmio, e se transformava em um artista de personalidade forte, mas cativante.

Trancado em seu ateliê, era um monstro na arte de misturar as cores, conferindo nas telas pinceladas precisas em tons mágicos e, de forma surpreendente, criava formas e combinações que tenho como fantásticas. Suas pinceladas são uma marca de suas obras.
Na linha da filantropia, se prontificou a restaurar dezenas de quadros da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Santos, se recusando a receber qualquer valor pelos serviços prestados. Trabalhou por meses restaurando obras de Guiomar Fagundes, Benedito Calixto, Oscar Pereira da Silva, Pedro Alexandrino, e muitos outros artistas do acervo da Santa Casa de Misericórdia.
Pintou vários quadros de provedores e personalidades ligadas à Santa Casa, que gentilmente foram doados a instituição.
Doou quadros à amigos, à instituições de caridade, à Missão dos Marinheiros Noruegueses no Brasil, ao Corpo de Fuzileiros do Exército, e muitas outras entidades.
Uma das cartas de agradecimento da Santa Casa de Santos de 13 de novembro de 1965.
Carta de agradecimento da Santa
Casa de Santos
O TÍTULO DE CIDADÃO SANTISTA
Pelo conjunto de sua obra, criação da Galeria de Arte Godoy, participação e presidência na Associação Santista de Belas Artes, participação em diversas exposições e mostras individuais e coletivas, fomentando e difundindo a arte, atuação na Sociedade Santista, além de ações filantrópicas, foi agraciado em 10 de novembro de 1964, com o Título de Cidadão Santista. Título que muito se orgulhava.
Uma de suas grandes obras é o retrato de José Bonifácio de Andrade e Silva, em tamanho natural, que se encontra exposta no Saguão da Câmara Municipal de Santos.

Título de Cidadão Santista
MAIS RESTAURAÇÕES E TRABALHO VOLUNTÁRIO: "O PRESENTE QUE GODOY VAI DAR A SANTOS" – JORNAL "A TRIBUNA", 01 DE JULHO DE 1973

Este é o título da matéria do jornal “A Tribuna”, de 01 de julho de 1973, contando um pouco mais sobre a vida do artista e a restauração de mais de 50 obras da Galeria da Santa Casa de Santos.
Alguns trechos da matéria:
“As circunspectas figuras, que do alto das paredes contemplam ora sérias, ora com leves sorrisos, os visitantes já não vão parecer “tão de antigamente” e talvez cheguem até a dar um novo colorido à tristeza silenciosa do hospital. Mas para que isso aconteça, um homem de 72 anos, cego de uma vista, manco de uma perna, saúde abalada por 2 enfartes, que lhe dão apenas o direito a comer peixe escabeche e macarronada, terá que trabalhar muito.”
“No final receberá um “muito obrigado” da administração do hospital. Não mais que um obrigado, porque Godoy não pretende aceitar nenhum centavo pelo exaustivo trabalho.”
“Uma manhã acordei de bom humor, alegre e fui conversar com José Gomes da Silva provedor da Santa Casa de Santos na época, de quem sou muito amigo. Como ele sabia do meu trabalho de restaurador solicitou-me que restaurasse quatro telas. Muito rápido lhe respondo: Sr. Provedor, vou restaurar a galeria inteira.”
Jornal A Tribuna, 01 de julho de 1973
UM LITRO DE AQUAVIT, “MINHA SENHORA” E MUITOS QUADROS
Para quem não conhece, Aquavit é um destilado de batatas, aromatizado com ervas, de origem escandinava e muito apreciado pelo “Velho Godoy”. Eu fiquei curioso, comprei, provei e é forte.
Conta meu tio que algumas vezes acabava se encontrando com seu pai em certos estabelecimentos nas proximidades do cais de Santos, e que meu avô conseguia sentar-se em uma mesa, tomar um litro completo de Aquavit, e mesmo com uma “senhora” sentada no colo o distraindo, ainda conseguia pegar a paleta, cavalete e pintar um quadro inteiro. Estes momentos folclóricos proporcionavam quadros que, antes de estarem terminados, já estavam vendidos. Nunca voltava para casa com um destes quadros.
MAIS APOSTAS
Certa noite, no querido “Chave de Ouro”, ele estava pintando quando chegou o comandante do navio “Dorotéia” e queria um quadro, e meu avô disse que levava até dois meses para terminar um quadro. Ele duvidou se ele poderia fazer mais rápido. O destemido capitão não sabia onde estava se metendo, e assim o velho Godoy pediu que ele desse qualquer tema e afirmou que em menos de 40 minutos o quadro estaria pronto. Se por acaso ele passasse do horário estabelecido, pagaria 5 dólares por minuto a mais. Em compensação, o capitão pagaria 2 dólares por cada minuto seu de pintura. Fizeram a aposta e o trabalho foi terminado em 38 minutos. O quadro era de uma mulher nua no mar. Posteriormente foi a leilão, sendo arrematado por 100 dólares na década de 40 ou 50.
Não consegui confirmar se este é o quadro original da aposta ou outro que meu avô acabou pintando depois mas, de qualquer forma, eu pessoalmente o vi pintando. Posso garantir que podia ter pintado em 10 minutos e os 38 minutos foram mais do que suficientes, e devem ter sido gastos para manter a cobrança dos 2 dólares por minuto, aumentando assim o preço da obra.

Quadro - Mulher nua no mar
SEU AMIGO "TATÚ"
Minha avó sempre falou de um grande amigo do meu avô, o “Tatú”. Contou que meu avô tinha dado guarita a ele na sua chegada a Santos em 20 de julho 1959, mas esta figura era na verdade o Dinamarquês Knud Harald Lykke Gregersen, conhecido com Lucky Tattoo, o primeiro tatuador do Brasil e pai da tatuagem em nosso país.
Tattoo se estabeleceu em Santos na rua João Otávio, no cais, montando aí seu ateliê, e não se sabe como a amizade com meu avô começou. Talvez por frequentarem os mesmos lugares, talvez por se tratar de dois artistas amantes da pintura e das cores, que se encontraram em algum momento. Mas o fato é que se desenvolveu uma grande amizade e no ateliê do Tattoo, também eram vendidas obras do velho Godoy.
Eu pessoalmente cheguei a ver o Tattoo e, apesar da pouca idade, me lembro de uma figura grande, com ar de gringo e com braços tatuados, o que não era comum no começo dos anos 70, e isso ficou marcado na minha memória.
Na figura do ateliê do Tattoo, pode-se ver vários quadros, que apesar de não ser possível ver as assinaturas, tem claros traços das pinturas do meu avô, e ainda suas clássicas molduras, também confeccionadas por ele.

Ateliê do Tattoo - http://memoriasantista.com.br

Arquivo do Autor
UM DESAVISADO CAMINHONEIRO
Estamos na década de 40, e um desavisado caminhoneiro trafega normalmente nas proximidades do cais de Santos, talvez pensando em entregar sua carga, ou com saudades de casa, quando um senhor de bengala avança a rua, na frente de seu caminhão. Talvez, pela perda do olho direito, o pintor não tenha visto o caminhão, mas o motorista conseguiu frear a tempo e evitar um acidente.
O evento podia ter se encerrado aí, se não fossem as 200 bengaladas que meu avô desferiu no caminhão. E assim, o desafortunado motorista desceu para tomar satisfações. Contou-me meu tio Walter, que presenciou os fatos, que o motorista tinha 2 vezes o tamanho do meu avô, mas não teve tempo nem para reclamar, pois

em segundos foi cercado por uma legião de amigos, conhecidos, prostitutas, donos de bares, garçons e outros trabalhadores, ou frequentadores da “Boca”, que colocaram o motorista para correr, protegendo fielmente seu amigo, o velho Godoy.
Tudo terminou em várias rodadas de bebida, pagas para todo o exército de salvadores, em um bar local, e a amizade e respeito pelo velho ficaram ainda mais fortes. O velho Godoy era uma figura folclórica na “Boca” do Cais em Santos nas décadas de 40, 50 e meados dos anos 60, onde parou de beber e fumar.
OS HOBBIES
Além de pintor, dizia poucas vezes que tinha outros “hobbies”. Um deles é ser restaurador, que na verdade não era um hobby, era uma atuação extremamente profissional e mais uma forma de arte que desempenhava com maestria, tinha feito até cursos sobre o assunto. Só restaurava em dias de muito sol, controlando os tempos de secagem das tintas e preparação das telas, era um detalhista nestes processos. Quando jovem gostava também de trabalhar em madeira, fazendo entalhe. Mas, com o passar dos anos, como era necessário um esforço físico, não se dedicou mais. Como passatempo predileto tinha uma atividade que poucos conheciam, e que pouco realizava, a confecção de ferraduras, isso mesmo, ferraduras para cavalos.
DOIS ANIVERSÁRIOS
Relata meu tio que tinha dois aniversários. Um primeiro, quando meu avô achou que ele já tinha nascido e assim efetuou seu registro de nascimento e, um segundo, um mês depois, quando realmente veio ao mundo. Coisas do artista Antonio Godoy.
VALSEMIA COM "V", E GODOI COM "I"
Todos os meus 4 tios têm nomes começados com “W”, e minha mãe, a caçula, tem o nome começado com “V”, em vez de “W”. Este inexplicável mistério nunca foi elucidado. Um erro do cartório? Sim, é possível, ou uma excentricidade do meu avô? Sim, também é possível, e acho que também nunca saberemos.
O mistério dos nomes não termina aí. O “Godoi” da minha mãe foi registrado com “I” e não com “Y”, como o correto e todo o resto de toda a família. Isso nunca foi discutido ou corrigido e, até hoje, toda vez que digo meu nome tenho que frisar: Godoi com “I”.
QUANDO PINTO O MAR, NÃO FICA NEM UM DIA EM CASA
Gostava de pintar faces, mas comentava que as vezes pintava o mar. Porém, estes quadros demoravam mais para serem feitos e não chegavam nem a ser pendurados na parede, como já havia um comprador. Lembro de falar algo como: "muitos dias para fazer e nem consigo olhar para eles, pois já compraram".
PINTO 5 QUADROS TENHO 10 COMPRADORES NA PORTA
Essa era uma frase clássica de Antonio Godoy e está presente em quase todas as entrevistas. Até acho que era uma certa desculpa para ir à farra, pois sabia que na volta tinha que trabalhar, mas compradores sempre viriam e assim novas farras também viriam.
JESUS CRISTO NA CIDADE DAS CRIANÇAS
Foi estranho e ao mesmo tempo gratificante. Nasci em Santos e lá morei até os 15 anos, e na época do colégio fomos com a escola visitar a “Cidade das Crianças”, no município vizinho de Praia Grande. Logo na entrada do prédio principal havia um grande quadro de Jesus Cristo e imediatamente reconheci as pinceladas. Para minha surpresa, estava assinado Antonio Godoy.
Não pude deixar passar e bradei: "é um quadro do meu avô!"
Tempos depois descobri que havia doado este quadro para a instituição, como fez com muitos outros quadros, que algumas vezes eram leiloados e os compradores gentilmente os doavam novamente para a instituição.
AS AULAS DE PINTURA
Quando tinha 9 ou 10 anos, minha mãe deu a ideia de que deveríamos ter aulas de pintura com meu avô, e assim foi. Tive um total de 2 aulas.
O que me impressionou foi que, pela primeira vez, pude entrar no ateliê e manusear pincéis e tintas. Lembro do meu avô com sua paleta misturando cores e, em uma aula de 15 segundos, me pediu que fizesse desenhos e os colorisse combinando algumas tintas que havia separado.
O resultado não foi muito bom e assim, na segunda aula, que deve ter durado os mesmos 15 segundos da primeira, minha carreira de aprendiz de pintor com meu avô foi encerrada.
Antonio Godoy pintou seu primeiro quadro aos 6 anos e com este quadro já ganhou um prêmio. Aos 12 já pintava profissionalmente. Talvez essa comparação tenha o desiludido quanto às minhas habilidades, mas seguir um pintor de milhares de quadros, que os faz com o mesmo esforço que faz para respirar, não é tarefa fácil.
Hoje, quando tenho tempo, pinto alguns quadros, que seguem a linha do movimento expressionista abstrato, e não sei se meu avô gostaria. Os coloquei no final deste relato, espero que gostem.
TRÊS MENINOS NA ESCADA
Lembro de uma foto onde eu, meu irmão Hélio e meu primo Wilson Roberto estamos sentados na escada de entrada da casa do meu avô. Os três estão com cara de poucos amigos, talvez pelo fato de que tínhamos que ficar ali sentados por longos períodos, sem poder circular pela casa, enquanto minha mãe conversava com meu avô e avó. Era uma rotina nas visitas ao meu avô. E nós loucos para correr pela casa, explorar tudo e mexer com as tintas e telas.
Por todo seu histórico e afetividade dos amigos, devia ter um melhor humor em sua época de boêmia porém, ao longo dos anos, se tornou mais austero e introspectivo.
TERRITÓRIO PROIBIDO
Adentrar a casa do meu avô era uma aventura. Era um sobrado grande e eu só visitei o andar de cima uma única vez enquanto ele era vivo. Só fui conhecer a casa toda depois de sua morte. O mesmo aconteceu com meu irmão, pois estávamos sempre juntos.
O ateliê era proibido e a garagem, que era a oficina de restauração, só podia ser olhada pela porta. O andar de cima tinha acesso proibido. Pode parecer estranho, mas era sua personalidade, e não reclamo disto. Talvez se houvesse mais flexibilidade poderíamos ter aproveitado mais tempo juntos.
Perguntei à minha prima e ela comentou que só subiu as escadas uma única vez na vida.
Meu primo Wilson Roberto lembra que uma vez subiu as escadas e no banheiro esbarrou em uma bacia de ágata, o que resultou em uma bronca e uma corrida escada abaixo.
Mais algumas das excentricidades de meu avô.
TRÊS POMBAS BRANCAS
Acredito que este evento ocorreu realmente em janeiro de 1973, com a assinatura do cessar-fogo firmado em Paris, que deveria significar o fim da Guerra do Vietnã, e não em abril de 1975, com a queda de Saigon.
Era sexta-feira, dia de ver o avô e, ao chegarmos à sua casa, meio que sem querer ele nos facilitou a entrada para o quintal dos fundos, o que foi um pouco estranho pela facilidade do acesso, mas éramos crianças e aproveitamos a oportunidade. E ali, perto do quarador, estavam 3 pombas brancas em uma gaiola de madeira.
Nunca tínhamos visto bichos por lá, mas tudo bem, ele era meio exótico, então ficamos de bico fechado que era o melhor a fazer. Então, ele foi até a gaiola, abriu sua porta, soltou as 3 pombas brancas e falou que era um símbolo de paz pelo fim de uma guerra.
Não entendemos nada, mas relembrando agora, é um tema curioso, afinal um pintor “Santista”, que vende quadros principalmente para tripulantes de navios, soltar pombas brancas em um ato pela paz e comemoração pelo fim de uma guerra do outro lado do mundo, em 1975, é no mínimo curioso. E não podemos esquecer que não havia internet para se ter notícias, essas vinham dos jornais que os amigos traziam nos navios e dos jornais locais.
1934
Coincidência ou não, o grave acidente que sofreu e que podia ter lhe ceifado a vida aos 31 anos, causando a perda de seu olho direito, foi no dia 7 de julho de 1934, quase exatos 41 anos antes do seu falecimento em 4 de julho de 1975. Talvez já tivesse chegado sua hora em 1934, mas algum bom anjo o ajudou a permanecer um pouco mais na Terra, para continuar contribuindo para a nossa arte e para que tivesse mais tempo para aproveitar a vida da forma que mais amava: pintando.
O QUE DEIXOU
O seu legado são suas obras com inconfundíveis pincelada e as expressões nos olhos das centenas ou milhares de faces que pintou ao longo da vida, que possibilitaram criar 5 filhos e uma vida, com certeza, repleta de aventuras.
Se você conhece mais da história de Antonio Godoy, ou possui um quadro seu, faça contato e compartilhe com o mundo suas obras e histórias.